sexta-feira, 22 de agosto de 2008

"A Saga De Um Pensador"

"Caro amigo Falcão!
Certa vez, disse-me que tanto você como o Poeta viam a assinatura de Deus nas flores, nas nuvens e também nas crises dos que sofriam de transtornos psíquicos. Na altura, pensei sinceramente que isso era um delírio, que era impossível encontrar beleza no caos. Pois bem, você tem razão. Tenho encontrado uma indescritível riqueza dentro daqueles que sofrem. Eles não são miseráveis nem passiveis de pena. Precisam de ser compreendidos, apoiados e encorajados. Tenho encontrado um património psíquico de inestimável valor no meio das lágrimas e do desespero.
Nos que sofrem de psicose, tenho descoberto uma criatividade espantosa. Embora os delírios e alucinações os perturbem, eles revelam uma criatividade excepcional, um engenho intelectual sem precedentes. Nem os melhores guionistas e realizadores de Hollywood conseguíram ter tanta imaginação. É de lamentar que a psiquiatria clássica despreze o imenso potencial intelectual deles.
A inteligência dos que sofrem de psicose maníaco-depressiva assombra-me. São verdadeiros génios. Na fase maníaca, a excitação, a rapidez de raciocínio e o volume de pensamentos que produzem transporta-nos para as nuvens, num estado de graça, longe de toda a realidade. Nessa fase, têm uma auto-estima exacerbada. Acham-se imbatíveis, revestidos de um poder sobrenatural. Na fase depressiva, pelo contrario, eles aterram a sua euforia, os seus pensamentos tornam-se pessimistas, levando-os a atolar-se em sentimentos de culpa e a viver os patamares mais baixos da auto-estima. Se aprendessem a pilotar os seus pensamentos e a gerir o motor da sua inteligência para não abandonarem os parâmetros da realidade, brilhariam mais do que qualquer "normal". Infelizmente, são incompreendidos, tanto por eles mesmos como pela sociedade em que estão inseridos.
Entre as pessoas deprimidas, tenho encontrado uma rara sensibilidade. São tão sensíveis que não possuem protecção emocional. Quando alguém as ofende estraga-lhes o dia, a semana, o mês e, às vezes, a vida. São tão encantadoras que, sem disso terem consciência, vivem o principio da co-responsabilidade inevitável de maneira exagerada. Por isso, perturbem-se com o futuro e sofrem intensamente devido a problemas que ainda não aconteceram. Preocupam-se tanto com os outros que vivem a dor deles! São óptimas para a sociedade, mas péssimas para si mesmas. Falcão, eu não tenho duvida de que, se os líderes políticos tivessem uma pequena dose da sensibilidade que as pessoas deprimidas possuem, as sociedades seriam mais solidarias e menos injustas. Sinto que a minha emoção é fria e seca quando comparada à deles.
Entre os que têm a síndrome do pânico, tenho encontrado um desejo inevitável de viver. Quando um ataque de pânico os atinge, o cérebro deles entra em estado de alerta tentando protege-los de uma grave situação de risco, um risco virtual. Ficam com taquicardia, ofegantes e suam muito, procurando fugir da síncope ou da morte, uma morte imaginaria que só existe no teatro das suas mentes. Se aprendessem a recuperar a liderança do eu nas suas crises seriam livres do cárcere do medo. Quem dera que os que consomem drogas, os que vivem perigosamente, os terroristas, os que promovem guerras tivessem a consciência da plenitude da vida e da grandeza da existência que os portadores da síndrome do pânico possuem. Apesar do sofrimento imposto pelo pânico, amam a vida. Queria amar a vida como eles a amam, viver cada minuto como se fosse um momento eterno.
Falcão, você tem razão em me dizer que a sociedade é estúpida. Realmente, ela valoriza a estética e não o conteúdo. Estou decepcionado até com as pessoas aparentemente cultas. Não percebem que cada ser humano, e em especial, se sofrer de algum transtorno psíquico, é uma jota única no anfiteatro da existência.
O meu desafio como psiquiatra não é apenas medicar os pacientes ou fazer sessão de psicoterapia, mas mostrar-lhes que a flor mais exuberante brota no inverno emocional mais rigoroso. os que atravessam os seus desertos psíquicos e os superaram tornaram-se mais belos, lúcidos e ricos de que eram.
Não é o que aconteceu consigo, meu dilecto amigo? através do drama da sua psicose você expandiu a sua nobre inteligência e tornou-se um mestre. Agora, os meus pacientes ensinam-me. Em alguns momentos, aprendo mais com eles do que com os meus professores. Espero que a minha capacidade de aprender nunca morra.
Procurei especializar-me em psiquiatria para conhecer a fascinante personalidade humana das suas doenças. No entanto, assim como você questionou o que era a loucura, tenho-me questionado muito sobre o que é a saúde psíquica. Quem é saudável? são saudáveis os meus colegas psiquiatras incapazes de receber os seus pacientes com um abraço e um sorriso? são saudáveis os pais que conhecem os personagens da TV, mas não conhecem os temores e as frustrações dos seus filhos, nem tem paciência para os seus erros? são saudáveis os professores que se escondem atrás de um giz ou de um computador e não conseguem falar da sua própria historia com os seus alunos? são saudáveis os jovens cuja emoção é incapaz de extrair muito do pouco, cujos prazeres são fugazes? E os que lutam para ganhar dinheiro, mas não sabem lutar pelo que amam, são eles ricos ou miseráveis?
Tenho também questionado a minha própria qualidade de vida. Pensei que eu era saudável, pois digo o que penso, luto pelo que amo e procuro proteger a minha emoção, mas descobri que conheço apenas a sala de visitas do meu próprio ser. Falta-me tolerância, afectividade, sabedoria, tranquilidade. No dia em que deixar de admitir o que me falta estarei mais doente do que os meus pacientes. Obrigado por me ensinar que sou apenas um caminhante. Há muita estrada a percorrer...

Do seu amigo e admirador,
Marco Polo"

Retirado do livro:
A Saga De Um Pensador
Augusto Cury

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